Comprei a minha primeira guitarra no Rossio

Comprei a minha primeira guitarra no Rossio
Centro comercial do Terminal do Rossio 1994

Baixa de Lisboa, Outono de 1990.

Ainda o terminal do Rossio fervilhava com lojas, naquilo que poderia ser considerado um pequeno centro comercial, e eu, com pouco mais de uma década de vida, estava prestes a trazer para casa a minha primeira guitarra.

Costumava ir à Baixa de comboio com a minha avó. As idas à Baixa eram uma espécie de viagem a outro país. Não que morasse longe — a viagem de comboio demorava cerca de 25 minutos — mas era simplesmente outro ambiente. Ruas com centenas de pessoas de ar cinzento, mais bem vestidas do que o habitual, mas, ainda assim, cinzentas. Os sons e os cheiros eram também diferentes.

Havia bastante comércio — a minha avó costumava visitar a já extinta Casa Monteiro — e tantas outras montras icónicas para ver e no final do nosso passeio acabávamos quase sempre a lanchar uma torrada na Mó. Havia também algo que, para uma criança, era especialmente marcante: as pessoas sentadas no chão, com um ar desgraçado, a pedir esmola. Era uma cidade bastante diferente daquilo que é hoje.

Recordo-me ainda de irmos com frequência a uma rua na Mouraria que seria uma espécie de precursora das lojas de chineses e indianos que hoje proliferam em Lisboa. Na altura, as lojas eram sobretudo de brinquedos e brindes, e algumas nem sequer vendiam a particulares — eram grossistas.

Nesse ano de 1990 eu tinha 11 anos, e foi por essa altura que comecei a prestar mais atenção às ocasiões em que o meu avô tocava no seu velho banjo de oito cordas. Sempre tive curiosidade em saber onde teria sido adquirido, mas não tenho memória de alguma vez ter dissecado as origens desse instrumento. Sei apenas que, nos anos 40/50, já estava na posse da minha família, como pode ser visto na fotografia abaixo, junto ao navio Quanza, que mostra o instrumento a viajar de Portugal para Angola.

Esse banjo foi, no entanto, o estímulo para a compra da minha primeira guitarra. Sempre que o meu avô o retirava do estojo, eu imitava os músicos que via na televisão: tocava nas cordas, tentava, com esforço, pressionar os trastes — a ação era consideravelmente alta, e a tensão das cordas não era também simpática. Era óbvio que dificilmente iria passar daquilo. Talvez por isso os meus avós tenham decidido que estava na altura de me presentear com instrumento mais acessível a uma criança de 11 anos.


Numa dessas viagens à Baixa, fomos a uma loja de instrumentos musicais que ficava no terminal do Rossio. A chegada a este terminal obrigava a passar por aquelas lojas, e era natural ir à única que conhecíamos. Do conjunto de espaços comerciais do terminal, só tenho memórias dessa loja de música, cujo nome não recordo. Sei que quatro anos mais tarde fechou.. entretanto encontrei a notícia que justificou o fecho - a CP anunciou o encerramento no âmbito do novo plano ferroviário da empresa.

Para uma criança de 11 anos, a visita era quase metafísica: dezenas de guitarras penduradas — elétricas, acústicas, clássicas —, amplificadores, luzes, e um cheiro predominante a madeira. Recordo-me de que as guitarras elétricas eram, na maioria, super strats pretas, muito populares em 1990. Havia também bastantes Ovation, ou pelo menos cópias.

As guitarras pretas super strat eram bastante populares em 1990.

Contudo, não foi nenhuma dessas que trouxe. Nesse dia, saí de lá com uma guitarra clássica 3/4 — talvez a mais acessível da loja. Foi-me vendida por um jovem funcionário de cabelo comprido e sorriso tímido, aspirante a músico, com um apelido tão improvável quanto memorável: Queimado. Penso que o primeiro nome era João, mas do apelido tenho a certeza.

A guitarra foi-me entregue numa caixa de cartão, de formato quase triangular. O fundo era mais escuro do que o habitual — o único detalhe distintivo que retenho. Levei-a debaixo do braço na viagem de comboio de regresso a casa.


Recordo-me de chegar a casa dos meus avós e observar o braço com bastante curiosidade, enquanto sentia o cheiro da madeira (laminada).
"Tantos trastes e tantas cordas… tantas combinações de som possíveis."

Julgo que custou cerca de 9.000 escudos, o equivalente a 45 euros. Acompanhou-me durante um ou dois anos, até que o fundo se descolou e começaram as vibrações e ruídos.

Foi com este instrumento que tive as minhas primeiras aulas de guitarra clássica. A ideia veio do meu vizinho de cima, o Sr. Vítor. Eu frequentava muito a sua casa e a minha compra coincidiu com o seu interesse pelo piano. Como queria ter aulas, sugeriu aos meus avós que eu o acompanhasse. Assim foi.

Fizemos ambos alguns meses de aulas. Aprendi o básico: acordes simples, pequenas melodias, leitura de pauta. A escola de música era no Casal de São Brás na Amadora; o nome já não consigo recapitular. Tal como a loja de música, as aulas alimentavam a minha imaginação.

Tinha uma curiosidade insaciável sobre guitarras elétricas: como soavam, se todas tinham o mesmo som, se eram mais fáceis de tocar. Um dia, o professor decidiu mostrar-me uma. Pediu que esperasse e voltou com uma guitarra elétrica nas mãos, tentando ligá-la a um amplificador. Algo não funcionava, mas pude pegar na guitarra e perceber as diferenças. Nesse dia, disse-me também que tinha uma Fender Stratocaster. Falou-me do Mark Knopfler. Percebi de imediato que se tratava de algo especial, até porque já tinha visto várias vezes esse formato de guitarra na televisão.

Uma das famosas stratocaster de Mark Knopfler, com braço em rosewood.

Esta primeira guitarra clássica de 3/4 foi nuclear no meu percurso das guitarradas. Ia comigo para todo o lado, enquanto o banjo do meu avô ficava guardado no estojo, saindo apenas em raras ocasiões quando o meu avô se sentia inspirado para tocar músicas como o Não Venhas Tarde, do Carlos Ramos.

Não sei que destino teve aquela pequena guitarra, mas sei a importância que teve para mim o acesso a um instrumento musical, mesmo de qualidade modesta. Foi o meu primeiro passaporte para um universo que nunca mais abandonei.

Foi nela que percebi que cada instrumento tem uma história para contar — que vai muito além da madeira, das cordas ou do preço. É a história de quem o tocou, de onde esteve, e de quem o ouviu.

Aqui, neste espaço, quero partilhar memórias como esta, falar de instrumentos com alma e, quem sabe, ajudar outros a encontrar a sua “primeira guitarra” — seja ela qual for.